Prof. Gerson Damiani fala sobre a importância da defesa da democracia
As nomenclaturas na política nada significam se, por trás delas, outros interesses prevalecerem. Ok, explico: qual a diferença, então, entre uma ditadura em uma república do século 21 e o absolutismo monárquico do séculos 18 e 19? Na prática, tirando as tais nomenclaturas, quase nenhuma.
Substitui-se o termo rei por presidente e, mesmo com muitas repúblicas tendo em sua composição órgãos legislativos, algo possível também em uma monarquia parlamentar, estes só atendem aos interesses do poder central. Pode parecer algo mais organizado mas é apenas mais enganoso. O discurso conceitual não é traduzido em ações.
E quando esses presidentes caem, um elixir de verdade emerge na atmosfera dos países até então submetidos aos seus caprichos. O povo parece renascer. O mesmo povo desfigurado, anestesiado e adormecido pela opressão, que tentava roubar a sua autoestima, para manter a crença de que ele não era capaz. De que a cidadania e igualdade de direitos eram apenas uma ilusão de transgressores. Robert Mugabe, que na última terça-feira (21) renunciou após 37 anos no poder no Zimbábue, foi mais um na lista.
Damiani, de gravata verde, esteve com o Dalai Lama nesta terça
Divulgação: Gerson Damiani
Enquanto Mugabe deixava a presidência, na Índia, em missão do recém-inaugurado, GLIP-CRC (Global Institute for Peace Studies – Centro de Resolução de Conflitos), da USP, o professor de Relações Internacionais, Gérson Damiani, se encontrava com o Dalai Lama (maior líder religioso budista), do qual ouviu palavras que exaltam a importância da democracia.
— Justamente hoje ele falou sobre tema similar, dizendo que a paz se expressa por meio da palavra individual e que o poder da palavra nunca pode ser substituído por um poder repressor. Eu concordo plenamente. A cidadania não pode nunca ser reprimida pelo totalitarismo.
Os que pensam que uma ditadura resolve o problema da “vagabundagem destes políticos” está dando carta branca para um único político fazer o que bem entende e considerar vagabundo quem lhe interessar.
Ele não chega ao poder, sempre por meio de golpes, com atestado de moralidade, mas apenas para atender interesses dos que se consideram “moralistas”. Na verdade, falsos moralistas. Ele se mantém ancorado na tortura, censura, assassinatos e ostensiva vigilância, em um clima de paranóia.
Damiani afirma que nesta sua visita à India, um país que desde 1950 vive sob a égide da democracia (apesar da violência entre alguns grupos que já matou governantes), está conhecendo melhor o sentido da liberdade individual.
— O totalitarismo não pode ser a resposta a uma crise, uma única pessoa não tem a capacidade de falar por todas as outras, isso só gera sede de poder e mais distanciamento do que realmente importa, a vontade da maioria.
A frase de Damiani me fez lembrar à do historiador britânico, Lord Acton. Quem a repetia sempre era o meu professor na Cásper Líbero, Amaury Moraes De Maria, falecido em junho último: “O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente”.
Essa imagem de ordem e respeito que os ditadores tentam impor em seus longos anos no poder não passam de maquiagens para esconder as fragilidades de suas políticas e o medo deles em serem descobertos, em todos os desvios morais que tentam atribuir a outros. Não existe, afinal, ditadura moral. Ética e honestidade quando impostas por um governo, estão pervertidas. Surtem o mesmo efeito ineficaz da tentativa de um presidente ordenar o fim do amanhecer ou do anoitecer.
O ditador, se fosse corajoso e se estivesse mesmo consciente de que tem força, se abriria para a democracia, pois dela ganharia permanente apoio. No poder e, ao sair, deixando um verdadeiro legado. Mais do que a dita ordem social no Chile, o “moralista” Augusto Pinochet (1973 – 1990), por exemplo, deixou como legado de sua sangrenta ditadura um acúmulo de contas pessoais irregulares em outros países. Educação de bom nível e contas públicas equilibradas podem ser obtidas por caminho muito menos tortuoso, injusto e doloroso do que o totalitário.
A essência da política moderna está em uma equilibrada separação dos poderes, conforme defendeu Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, conhecido como Montesquieu. Em seu livro O Espírito das Leis (1748), ele esmiuçou a importância das verdadeiras liberdades individuais, que, assim como as instituições, devem estar equilibradas política, econômica e socialmente. O déspota, para ele, era o líder de um regime de terror.
E quando um destes déspotas deixam o poder, a comemoração chega como se o povo fosse liberto de celas aprisionantes, solitárias que acorrentavam qualquer esperança, abrindo os céus para uma luz que ultrapassa o concreto dessas celas e mostra que toda aquela devoção aparente, em torno do mandatário, não passava de medo. São momentos belos de celebração, instantes eternos em que a verdade contida por décadas vem à tona, como se tudo fosse um pesadelo que passou. E era ela, essa verdade generosa, quem estava sempre presente, reinando por trás da tragédia humana.
Alguns deles têm a sorte de não serem presas na mão da turba ensandecida, que transforma a raiva acumulada em atrocidade. Foram os casos de Benito Mussolini (Itália, 1922 – 1943), Nicolae Ceauşescu (Romênia, 1965 – 1989) e Muamar Kadafi (Líbia, 1969 – 2011). Diante da fera incontida, e ferida, enxergando e escutando de perto, no grito da multidão, o reflexo das próprias ações, esses ditadores se mostram frágeis. Olham ao redor assustados. Um tanto descabelados, com trajes amassados.
Expõem uma faceta até então desconhecida, enquanto são levados por guardas ou arrastados pelos próprios conterrâneos. Às vezes bradam ordens enlouquecidas, ouvidas como se viessem de um paciente em delírio. Raiva e medo, então, mostram que são partes de uma mesma moeda. A ditadura é ruim porque ora esta moeda cai para um lado, ora para outro. Nunca há meio-termo. Se houvesse, parte do povo não enveredaria pelo equivocado caminho da justiça com as próprias mãos. Nem esses ditadores monstruosos revelariam o seu lado humano tão tardiamente.